sábado, 17 de maio de 2014

Mais que uma princesa: Santa Isabel, redentora do Brasil

Católica fiel às orientações do papa, a princesa Isabel abraça uma causa, alcança uma graça e se torna a redentora dos escravos no Brasil

Robert Daibert Júnior



Uma princesa de vassoura na mão varrendo a igreja? E ainda jogando no corpete de seu vestido o pó recolhido do chão? Apesar de estranha, a cena se passou em Guaratinguetá, em 1884. A personagem era a herdeira do trono de D. Pedro II, a princesa Isabel, que cumpria uma promessa feita anos antes à Santíssima Virgem Aparecida. A graça alcançada era ter gerado filhos.
Em Petrópolis, a princesa também era vista frequentemente limpando templos católicos. De fato, ela se consumia em atividades religiosas. Cantava no coral da igreja, participava da adoração ao Santíssimo Sacramento, cuidava da ornamentação do altar. Não raro, passava o dia todo na igreja. E assim, aos poucos, começava a incomodar muita gente.
Além das práticas católicas, sua rotina era comum aos padrões das mulheres de seu tempo e de seu segmento social. Em sua casa, na Corte ou em Petrópolis, Isabel se dedicava com afinco ao cultivo de flores, tocava piano, recebia amigos e parentes, escrevia cartas. Ao lado do marido, o conde d’Eu (1842-1922), abria os salões de seu palácio em Laranjeiras para animados saraus e jantares. Mas, em meio a tudo isso, reinava uma forte religiosidade, que marcou não só sua história pessoal como também a própria História do Brasil.
A religião era uma espécie de óculos pelos quais Isabel olhava o mundo. Certa vez, ela censurou D. Pedro II por ter visitado uma sinagoga na Europa. Também implicou com sua visita àescritora George Sand (1804-1876), a quem considerava imoral. Sand era uma precursora do feminismo, defensora de ideias socialistas, famosa por suas roupas masculinas e seus casos amorosos. Uma figura bem diferente daquelas por quem, desde a infância, Isabel demonstrava admiração e devoção, como os reis e rainhas canonizados pela Igreja Católica. 
 São Luís de França e Santa Isabel, fosse a de Portugal ou a da Hungria, eram seus modelos. Em Caxambu, a princesa iniciou a edificação de uma igreja consagrada a Santa Isabel de Hungria. Em sua primeira viagem à Europa, fez questão de beijar as mãos de Santa Isabel de Portugal, cujo corpo encontrava-se preservado em um caixão. E conforme antiga tradição católica, além de comemorar seu próprio aniversário de nascimento, a princesa também celebrava e recebia presentes nos dias dedicados às duas santas suas homônimas e de quem descendia.
Para Isabel, o Brasil integrava a cristandade, cuja autoridade era o papa, a quem os governantes deviam respeito e submissão. Dessa forma, o exercício da política deveria estar diretamente associado à obediência a esse líder maior, preceito que determinava suas práticas religiosas cotidianas e mesmo sua conduta como regente do Império e herdeira do trono.
Durante a chamada “questão religiosa” (1872-1875), estopim das dificuldades de relação entre a Igreja e o Estado no país, a princesa tomou as dores dos bispos de Olinda e do Pará, presos em 1874 a mando de D. Pedro II por interditarem irmandades frequentadas por maçons. 
Os religiosos obedeciam a uma recomendação do papa não validada pelo imperador, chefe da Igreja no Brasil, conforme a Constituição do Império. Ao intervir na questão, Isabel questionou o pai. “Devemos defender os direitos dos cidadãos brasileiros, os da Constituição, mas qual a segurança de tudo isso se não obedecemos em primeiro lugar à Igreja?”.
Os políticos ligados ao Partido Liberal denunciavam as estreitas ligações entre a herdeira do trono, o episcopado brasileiro e o Vaticano. Como defensores da separação entre Igreja e Estado, viam em Isabel um futuro obstáculo ao seu modelo de sociedade. De fato, durante sua terceira regência (1887-1888), as discussões sobre a adoção do casamento civil, repudiado pelo catolicismo romanizado, foram trancadas no Senado.
Isabel usava sua posição privilegiada para ajudar os necessitados. Promovia concertos, bazares e leilões, mobilizando diversas redes de colaboradores, no Brasil e no exterior. Os recursos angariados eram destinados aos necessitados em maior evidência em cada momento: os refugiados da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) na Inglaterra, as vítimas da Grande Seca do Nordeste brasileiro (1877-1879) e os feridos nas batalhas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
No Brasil, a princesa abraçou com fervor religioso ainda maior a causa da abolição. Acolheu e alimentou escravos fugitivos em seu palácio. Fomentou campanhas e criou livros de ouro para a subscrição de doações, com o objetivo era angariar fundos para a compra de alforrias. Sua motivação cresceu a partir de 1887, quando o episcopado brasileiro, afinado com as orientações papais, promoveu intensa campanha abolicionista. 
Por meio de cartas pastorais, os bispos convocaram os católicos do país a promover a libertação de escravos em honra ao jubileu sacerdotal do papa. Como católica fiel às orientações papais, a regente atendeu às suas súplicas. Assim, após uma queda de braço que envolveu a demissão do Gabinete Cotegipe, a Lei Áurea foi assinada em 1888. Dias depois, ainda como princesa regente, ajudou a organizar uma gigantesca Missa campal em agradecimento pelo fim da escravidão.
Sem o apoio dos fazendeiros escravistas, a monarquia parecia ameaçada. Isabel confessou mais tarde saber dos riscos que corria. “Fui alertada de que o ato não era político. Mas [...] a agitação entre os escravos era crescente. Leão XIII me pressionava e como poderia eu, batizada e livre, suportar que meus irmãos em Jesus Cristo continuassem escravos, enquanto podiam contar apenas comigo para libertá-los?”
A manutenção da escravidão gerava temores, como a eclosão de uma guerra civil entre abolicionistas e escravocratas, como ocorrera nos Estados Unidos, ou uma repetição do ocorrido no Haiti, onde os negros expulsaram os brancos. A libertação sonhada pela princesa seria ordeira e pacífica, de modo a evitar o pesadelo das convulsões sociais. A liberdade deveria ser uma doação e uma bênção. 
Como “redentora dos cativos”, a princesa via-se agora cumprindo o papel de governante católica com o qual se identificava desde a infância.
A Lei Áurea por Miguel Navarro Cañizares

Meses depois da Lei Áurea, em setembro de 1888, a princesa recebeu a Rosa de Ouro, uma condecoração oferecida apenas a chefes de Estado em reconhecimento por sua fidelidade à Santa Sé. Por carta, o papa Leão XIII não só lhe agradecia como interpretava a assinatura da Lei como sinal de dedicação de sua “Filha muito amada” às orientações da Sé Apostólica. Nos meios católicos, a celebração em torno da entrega da Rosa de Ouro revestia-se de simbolismos. Para uns, seria o início do Terceiro Reinado, uma espécie de coroação antecipada e chancelada pela Igreja. Outros viam no episódio um novo momento de fundação. Era a “segunda Missa no Brasil”, diziam. Mas o fato é que Isabel, durante a solenidade, causou constrangimento nos meios políticos liberais ao jurar fidelidade ao papa, um soberano estrangeiro.
No exílio, após a queda da monarquia, Isabel foi procurada por Silveira Martins (1835-1901), senador do Império entre 1880 e 1889. O assunto era a restauração da monarquia. A ideia era que o ex-imperador e a filha abdicassem em favor do príncipe D. Pedro, o filho mais velho da princesa. O rapaz tinha então 15 anos.  O plano era levá-lo de volta ao Brasil, sem a presença dos demais membros da família imperial.  A chefia do Estado seria entregue a um governo regencial até que o garoto atingisse a maioridade. O ex-imperador aceitou tudo de pronto, mas a princesa foi contra. 
“Embora brasileirasou,antes de tudocatólica; e com relação a meu filho ir para o Brasiljamais o confiarei a este povo[os políticos]já que o meu dever é a salvação de sua alma.”
Irritado e desiludido, o político respondeu-lhe prontamente:“Entãosenhoraseu destino é o convento!”  
A princesa não chegou a herdar o trono de seu pai. No exílio na França, onde permaneceu até sua morte, em 1921, Isabel dedicou-se ainda mais à caridade e a um contato mais próximo com o Vaticano.Durante a velhice, promoveu diversas campanhas de ações beneficentes dirigidas aos brasileiros, tudo com auxílio de amigos e, principalmente, por meio de suas sólidas articulações com o episcopado. Mesmo impedida de ocupar o trono, ela “reinava” a seu modo e à distância. 
Na França, cultivava em seu palácio um jardim de plantas brasileiras e ensinava a língua portuguesa aos netos. Em seus aposentos, guardava com devoção os objetos que considerava mais sagrados: abandeira imperial brasileira, a coroa do Império, a Rosa de Ouro e uma imagem do Sagrado Coração de Jesus, maior devoção entre os católicos romanizados.

Robert Daibert Júnioré professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor do livro Isabel, a ‘Redentora dos escravos’: uma história da princesa entre olhares negros e brancos (Edusc, 2004).
fonte:http://www.revistadehistoria.com.br/


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